Trabalhando Memórias Literárias
Memórias
literárias são textos produzidos por escritores que dominam o ato de escrever
como arte e revivem uma época por meio de suas lembranças pessoais. Esses
escritores são, em geral, convidados por editoras para narrar suas memórias de
um modo literário, isto é, buscando despertar emoções estéticas no leitor,
procurando levá-lo a compartilhar suas lembranças de uma forma vívida. Para
isso, os autores usam a língua com liberdade e beleza, preferindo o sentido
figurativo das palavras, entre outras coisas. Nessa situação de produção,
própria do gênero memórias literárias, temos alguns componentes fundamentais:
·
Um
escritor capaz de narrar suas memórias de um modo poético, literário;
·
Um editor
disposto a publicar essas memórias;
·
Leitores
que buscam um encontro emocionante com o passado narrado pelo autor, com uma
determinada época, com os fatos marcantes que nela ocorreram e com o modo como
esses fatos são interpretados artisticamente pelo escritor.
A
situação de comunicação na qual o gênero memórias literárias é produzido marca
o texto. O autor escreve com a consciência de que precisa encantar o leitor com
seu relato e que precisa atender a certas exigências do editor, como número de
páginas, tipo de linguagem (mais ou menos sofisticada, por exemplo, dependendo
da clientela que o editor procura atingir).
O tempo, o chiado e as flechas
Aluno:
Jhonatan Oliveira Kempim
Professor:
Alan Francisco Gonçalves Souza
Escola: E. M. E. F. Teobaldo Ferreira – Espigão d’Oeste
(RO)
Era no
tempo das matas virgens. Os espigões de Espigão d’Oeste eram cobertos de
cerejeiras, mognos, cedros, jatobás, ipês e de imensas castanheiras. Os rios e
igarapés tinham vida e eram limpos. O sol nascia e se punha na maior paz. Ao
dormir, podíamos ouvir o silêncio da noite que só era rompido pelos bramidos de
macacos e de onças-pintadas. Morávamos em uma casa de madeira lascada de
amburana. Ainda não existiam serrarias. O chão era de barro batido e o telhado,
de folhas de buriti. Pelas frestas das paredes o vento nos visitava, deixando
nossas noites sempre fresquinhas. Andava pelas matas ouvindo os sonoros
cânticos dos pássaros. Olhava para o céu e via a moldura que envolvia a
natureza.
Por algum
tempo tive a certeza de que aqui era o paraíso. Era um território indígena. Era
o paraíso da tribo Suruí.
Daquele
tempo, do que minha mente não me escapa, foi a manhã do dia 17 de julho do ano
de 1973. Fazia um calor insuportável. O sol ardia vermelho no céu, a fumaça
ardia cinzenta em meus olhos e as fuligens desciam como se chovesse... Havia
queimadas por todos os lados. Precisávamos de pasto. Queríamos o progresso. Na
cozinha somente uma cuia, uma moringa, duas panelas de pedra e uma panela de
pressão ornamentavam o ambiente junto do fogão a lenha.
Nessa
manhã, meu filho mais velho brincava no terreiro e eu, dentro de casa,
preparava o almoço. Meu marido havia saído com outros homens para fazer
derrubada. Ouvi o primeiro chiado da panela de pressão que cozinhava o feijão.
Observei a sombra da bananeira para marcar o tempo do cozimento... Foi esse o
tempo que jamais queria que tivesse existido... Foi esse o tempo que jamais me
esqueci...
Pela janela
avistei Júlio César apanhando goiabas... A panela ainda chiava... Olhei mais
uma vez para o quintal e Júlio César estava sentado a comer as frutas. Tudo era
muito calmo... A panela ainda chiava... O tempo. O chiado. A flecha... Fiquei
perplexa... A panela chiava... Júlio César não comia mais as goiabas, elas
estavam espalhadas ao seu redor... A panela chiava... Fiquei surda e muda...
Não ouvi mais chiados, não falei mais nada, não pensei mais em nada, não queria
ver mais nada... O tempo parado. Eu surda. E meu grito:
—
Nãoooooooooo...
O tempo me
mostrou mais uma flecha, como a outra, certeira. Ela também veio fazer morada
ao lado da anterior, na garganta do meu filho. Minhas trêmulas pernas me
levaram ao encontro de algo que parecia mentira. Queria que tivesse sido apenas
um sonho. Não foi sonho. Era tão real quanto a fuligem negra que cobria meu
corpo; tão real quanto o vermelho do sol e dos meus olhos que agora ardiam não
só pela fumaça, mas também pela dor; era tão real quanto o vermelho que
passeava para fora do corpo de meu filho.
O chiado
trouxe as flechas das mãos de um assustado suruí inocente, que foi combater o
estranho e acabou tirando a vida de Júlio César. Foi o chiado, estranho som que
não fazia parte daquele paraíso habitado por inocentes índios, araras, macacos
e onças-pintadas. O desconhecido assusta. O chiado assustou o índio. A flecha
me assustou.
Hoje me
assusto ao olhar nossos espigões cobertos por pastos, abrigando uma ou outra
castanheira e alguns ipês, sobreviventes árvores que resistiram às ações dos
seus desconhecidos brancos. Imponentes árvores que assistem ao progresso das
casas sem frestas para dar passagem ao vento, protegidas por grades e cercas
elétricas. Imponentes árvores que assistem à falta d’água dos rios e dos
igarapés. Imponentes árvores que encantam nossos olhos. Imponentes árvores que
se fazem vivas para assistir ao maravilhoso espetáculo desse nosso céu
rondoniense. Maravilhoso céu que presenciou o tempo, o chiado e as flechas.
Maravilhoso céu que é meu cúmplice... Maravilhoso céu que divide comigo o sumiço
da panela de pressão.
(Texto baseado na entrevista feita com a senhora
Terezinha Von-Rondon Gonçalves.)
Interpretação:
01-Que
o principal acontecimento que marcou a narradora? Por quê?
02-Que
você sentiu ao ler a história? Justifique.
03-Que
personagens aparecem na narrativa?
04-Que
parte da história chama mais sua atenção? Por quê?
05-Em
que tempo acontece a narrativa?
06-Em
que espaço acontece a história?
07-O
texto apresenta o narrador personagem ou o narrador observador? Justifique com elementos
do texto.
08-Que
expressões do texto demonstram que o narrador está se lembrando de algum fato?
09-Que
sentimentos são expressos durante o enredo?
10-Hoje,
que acontecimentos são registrados no lugar onde vive o narrador?